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CAETANO QUER SER AMERICANO?


Numa das músicas você trata da vontadede Raul Seixas de "Ser Americano". Há um século Joaquim Nabuco tratava do problema de como nós brasileiros víamos os estrangeiros. Num trecho de minha formação, ele diz que o ar lá é "mais vivo e mais leve" que outros, "saturados de tradição e convencionalismo". Os americanos estariam, segundo Joaquim Nabuco, "inventando a vida, como se nada tivesse existido até então". Você, que acaba de se transformar em discípulo de Joaquim Nabuco, tem ou teve esse sentimento diante dos Estados Unidos?

Caetano Veloso:
"Joaquim Nabuco vai fundo também na crítica à idéia de igualdade, tal como ela era vivida pelos americanos. Diz que os americanos viviam a ilusão de que tinham uma liberdade individual que resultava numa igualdade de cada indivíduo muito mais desenvolvida do que na Inglaterra, por exemplo. Para ele, que era anglófilo, a Inglaterra tinha uma solução que oferecia resultados melhores, porque a igualdade que se esboçava era feita com conteúdos de nobreza moral que os americanos desconheciam."
Mas você tem o pensamento de que, como Joaquim Nabuco dizia, os americanos estavam reinventando a vida?

Caetano Veloso:
"Eu tenho esse pensamento. É o que a gente sente estando nos Estados Unidos - ou de longe. É o aspecto mais positivo e animador dos Estados Unidos. Interessa, porque parece um sopro de ar puro na história da humanidade. Mas Joaquim Nabuco escreveu que os americanos, quando dizem que cada indivíduo pode ter liberdade, estão falando de norte-americanos brancos. Os negros estão, na mente do americano, abaixo da condição de humanidade. Joaquim Nabuco também dizia que, quando um americano olha para seus primeiros vizinhos na América Latina - o mexicano ou cubano -, para não falar dos outros latino-americanos, ele o faz com um desprezo nunca visto de um ente humano para outro em nenhuma outra situação. Aos olhos de Joaquim Nabuco, essa atitude desqualifica o valor espetacular da individualidade que a grande democracia americana preconizava e preconiza."
Você ainda acredita incondicionalmente na idéia de que o Brasil vai ser -ou é- um país original?

Caetano Veloso:
"Acredito - mas não incondicionalmente. Os países são originais! Mas o fato de um país desse tamanho falar português e ter um autor como Machado de Assis no século 19 e um autor como Guimarães Rosa no século 20 faz do Brasil um grande segredo que nós guardamos e queremos revelar. É uma experiência única! Nossa confusão racial e o fato de falarmos português e sermos um país de dimensões continentais na América do Sul significam um acúmulo de desvantagens que só pode ser lido como uma graça. É tão grande o acúmulo de desvantagens, num país ao mesmo tempo tão interessante, que a gente é forçado a ler isso como uma benção.
Isso não é uma questão apenas de eu querer me salvar já que eu nasci no Brasil e sou mulato do interior da Bahia, filho de gente do povo. Minhas duas avós nunca se casaram. Cada uma teve filhos com mais de um homem. Ou seja: é gente do povo brasileiro mesmo! Meu pai era mulato. Eu já estou salvo! Mas qualquer mente inteligente concluirá que o país tem um acúmulo considerável de peculiaridades - desvantajosas em princípio, mas não malditas em si mesmas - que nos leva a desconfiar, com toda razão, de que tudo significa uma benção."
Além da referência direta a Joaquim Nabuco, você faz pelo menos duas homenagens no disco, uma a Antonioni, para quem você compôs uma música e outra a Jorge Ben de quem você regravou zumbi. É possível comparar o significado de um e de outro sobre o que você faz?

Caetano Veloso:
"Além do Joaquim Nabuco, tenho no disco três personagens explicitamente homenageados: Raul Seixas, Michelangelo Antonioni e Jorge Ben. Raul Seixas é homenageado numa canção que se chama "Rock'n'Raul". Acabei de ouvir um disco de Tom Zé que tem uma música sobre Raul Seixas. É como se fosse um cordel que narra a chegada de Lampião e Raul Seixas no FMI. Os dois estão enfrentando o FMI e Washington. Já no meu disco, Raul aparece como um sujeito que superexibia a "vontade fela da puta de ser americano". Era como Raul Seixas falava - um modo baiano antigo de falar; acho que em Pernambuco também se fala assim.
Pode parecer, a ouvidos mais tolos, que a minha canção apresenta uma desaprovação, seja do Raul, seja da vontade de imitar os americanos. Em primeiro lugar, não desaprovo Raul, um dos meus artistas favoritos. O primeiro disco de Raul Seixas é um dos melhores já feitos no Brasil - uma obra-prima. Não havia quase nada feito por outros artistas brasileiros - pode pensar nos maiores nomes - de que eu gostasse mais. Havia muito pouca coisa que eu chegasse a gostar tanto quanto eu gostava de "Ouro de Tolo".
Porém, nunca vivi, como ele e muita gente viveu e vive, a vontade imediata de ser americano. Não foi assim comigo e com muitas outras pessoas da minha geração, como Chico Buarque, Paulinho da Viola, Glauber Rocha, Cacá Diegues. Mas aquele sentimento - mundial diante do que os Estados Unidos se tornaram - se manifestou ainda mais fortemente nos países da América. Era a vontade de chegar à situação do americano.
É como se a vida que podíamos levar não fosse a verdadeira vida. E' como se, através dos filmes, canções e reportagens nas revistas, a gente visse que ali e' que se vivia a verdadeira vida. Assim como tantos outros, Raul não queria viver o que não fosse a verdadeira vida. Rita Lee contou numa entrevista que Raul Seixas disse a ela: "Sou americano. Apenas nasci no país errado". Todo o negócio do rock vem dessa vontade.
Mas não é só o rock: a bossa nova tem muito disso. João Gilberto é que deu um nó, uma virada. Mas Johnny Alf, Dick Farney, os próprios nomes que eles botaram em si mesmos, as músicas que eles fizeram... Aloísio de Oliveira - um letrista espetacular, uma pessoa maravilhosa, um homem que foi tudo para Carmen Miranda, o namorado, o companheiro, o sujeito que amparou Carmen nos Estados Unidos, autor de letras lindas com Tom Jobim - tinha aquela vontade louca de ser americano...
Mas, em primeiro lugar, é difícil querer exigir que essa vontade não apareça. É alguma coisa vivida desde a infância. Também há a admiração do desenvolvimento harmônico e da sofisticação da música popular americana em comparação com as outras. Quem tem bom ouvido musical e ouve uma música harmonicamente mais rica e ritmicamente mais inventiva se sente atraído por ela, consegue entendê-la, quer reproduzí-la, quer participar daquele mundo. É uma vontade legítima!
Por outro lado, o sujeito vê naqueles grupos de rock a sensação de que havia uma pujança de energia que tinha de ser extravasada em música barulhenta e roupas espalhafatosas. Então, o sujeito tem, desde criança, uma vontade genuína de fazer aquilo. Depois de adulto, o que ele faz com aquela vontade genuína é uma arte que ao mesmo tempo a exiba e comente com alguma ironia. Não com a ironia dos tropicalistas - que não vieram daí. Nós não viemos da vontade de imitar. Eu, sobretudo, não - nem tão pouco Gil, Gal, Bethânia, Tom Zé.
Mas a linhagem do rock vem daí. A música que eu fiz sobre Raul trata disso. Numa frase rápida, a letra diz "e hoje olha os mano..." É uma menção aos rappers brasileiros - que também demonstram uma grande vontade de se identificarem com os americanos. Os nomes que eles escolhem para si são nomes em inglês, parecidos com os dos negros americanos. É imensamente saudável, porque apresenta uma vontade de discutir e problematizar o modo como se dispõe o panorama racial no Brasil. Preferem se chamar Ice Blue, Mano Brown, Eddy Rock.
Mas, quando vejo uma vontade muito destrutiva de simplesmente imitar os americanos - e empobrecer a vida brasileira -, eu digo assim: "Essa gente merece um Ariano Suassuna". Adoro quando Suassuna mantém aquela ranzinzice. Não penso como ele. Penso de uma maneira que ele já disse repetidas vezes que não aceita. Eu entendo que as pessoas, se traírem essa vontade genuína, estarão sendo menos brasileiras. Porque é muito profundo, num verdadeiro brasileiro, sentir a vontade incontrolável de tentar identificar-se com os norte-americanos! Não é a única coisa que pode acontecer com os brasileiros. Mas é um muito freqüente, muito compreensível e muito profunda na formação de uma personalidade brasileira.
Os rappers trazem uma conotação de crítica ao panorama racial brasileiro. Dizem coisas que a gente não acha em outras áreas da produção. Se eles não tivessem a vontade louca de imitar os americanos, a gente não estaria hoje contando com isso. Assim é o caso de Raul Seixas. Por esse motivo é que falo na letra "e hoje olha os mano". Tudo e' exemplo de dignificação dessa atitude."
Jorge Ben é um caso espetacular de saúde cultural, é rock com samba, um brasileiro preto do Salgueiro que terminou indo viver em São Paulo um período crucial da vida. Jorge Ben é mestre dos pagodeiros, rappers, tropicalistas e roqueiros. A gente encontra Jorge Ben nos neo-bossanovistas, nos discos do Milton Nascimento, nos pagodes, nos Racionais, nos meus discos. Desde os anos setenta, sempre gravo músicas de Jorge Ben. Os Paralamas do Sucesso gravam, todo mundo grava. Porque ele é uma solução espetacular. Dá uma sensação de saúde cultural sem os amparos do status de uma educação de alta classe média. Não é assim. Jorge Ben não é letrado: é um grande poeta, um grande solucionador cultural, um sujeito imenso.
Quanto a Antonioni: tenho com o cinema italiano uma dívida imensa - que venho pagando pouco a pouco. Eu gostava dos musicais americanos, mas tinha uma grande paixão pelos filmes neo-realistas italianos e pelos desdobramentos do neo-realismo. Fiz uma música sobre Giulietta Masina, o que me levou a ser convidado para fazer um espetáculo em homenagem a ela e a Federico Fellini - que, gravado, terminou saindo em disco. Depois de ter visto todos os filmes de Antonioni, tive um contato com ele. A admiração às vezes assombra.
Tive um contato pessoal com Antonioni, graças a meus dois amigos e cineastas brasileiros Júlio Bressane e Cacá Diegues. Um não se dá com o outro, mas ambos adoram Antonioni. Os dois convidaram-no para jantar. Antonioni aceitou os dois convites. Todos dois me convidaram também. Antonioni, então, riu muito, porque eu estava nos dois grupos, totalmente diferentes. Quando fui a Roma, tive a surpresa de vê-lo na platéia do meu show "Fina Estampa". Nem vi que ele estava na platéia, mas, quando acabou o show, ele veio ao camarim para falar comigo. Antonioni tinha ficado muito bem impressionado.
Quando fiz em Roma o show Prenda Minha, ele estava na platéia novamente. Voltamos a conversar. Curiosamente, ele não fala, desde que sofreu o derrame, há oito anos, mas se comunica - muito - através da mulher, dá opiniões através de gestos. É muito bem-humorado. Gostou muito do show. Já devo tanto a essa gente, já devo tanto a esse homem... Tento ir pagando pouco a pouco minha dívida com o cinema italiano - que, agora, acaba de crescer com o filme de Bertolucci, "O Assédio". Nunca fui fã de Bertolucci, mas "O Assédio" é uma obra-prima. Eu digo: meu Deus, continua crescendo o meu débito com os cineastas italianos. Fiz, então, uma música que se chama "Michelangelo Antonioni".
O historiador Evaldo Cabral de Melo reclama de que a obsessão em procurar uma identidade nacional é típica de países inseguros. Você acha que a música, no caso do Brasil, pode ajudar o país a achar essa tal identidade? Você tem essa pretensão?

Caetano Veloso:
"A obsessão em encontrar uma identidade nacional evidentemente é sintoma de uma insegurança do país. O Brasil tem todas as razões históricas para se sentir inseguro. O que falo não pode nem se contrapor à fala de um historiador - um sujeito que se dedica a estudar e a levantar dados. Mas eu, compositor de música popular, tinha, pessoalmente, na época do Tropicalismo, uma atitude de enfrentar e ao mesmo tempo "desconstruir", como se diz hoje em dia, a questão da identidade nacional. Nós fizemos um grande escândalo anti-nacionalista, demonstramos ostensivo desprezo pela idéia de busca de raízes da autenticidade nacional. O primeiro apelido do Tropicalismo foi "som universal". O nome "Tropicalismo" veio depois.
Gil gostava da expressão "som universal". Também gostava de "pop". Eu não gostava tanto de que se chamasse Tropicalismo porque achava que era um rótulo que ia prender a gente nos trópicos. Era o que não queríamos. Gostávamos do desrespeito a um estilo nacional-popular que era buscado então. A gente queria desrespeitar esse negócio. O filme "Terra em Transe" tem um desespero em relação à identidade brasileira. Há uma grande agressividade em relação a esse tema. Vivia-se, ali, o auge da obsessão com a identidade nacional. Isso fez a questão da busca de identidade entrar em crise - ou em transe. Isso me interessou muito logo que vi o filme.
Talvez a música popular propicie uma maior irresponsabilidade do que o cinema e a literatura. Fizemos coisas que eram um desrespeito à própria busca da identidade, embora tivessem a ambição de resolver o problema da identidade nacional. Era como se a gente quisesse passar por cima do tema, como se a gente dissesse: eu considero que, com o desespero da busca de identidade, a vontade louca de imitar os americanos, a falta de segurança, a incapacidade de organizar uma sociedade respeitável, com tudo, acho que já tenho identidade suficiente. Já estou falando diretamente para o mundo, como se dizia no Recife numa famosa emissão radiofônica: "Pernambuco falando para o mundo."

Texto : Caetano Veloso


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