MÁSCARAS DA UTOPIA
Em fevereiro, tem Carnaval, canta Jorge Ben Jor; o evento, que na Bahia e em vários lugares do Brasil hoje em dia aglomera trios elétricos, blocos, bandas nacionalmente famosas e toda uma estrutura empresarial, nutrindo e se capitalizando com ele, segundo Melo Morais Filho, pode ser ligado “às Saturnálias, realizadas em Roma, de 17 a 19 de dezembro”. Ele afirma em Festas e Tradições Populares no Brasil que “todas as civilizações tinham essas festas orgiásticas, reunidas nos usus do povo romano, convergência de todos os povos vencidos”. Morais Filho comenta que o Carnaval “é uma frenopatia e filia-se às mais altas civilizações”. Ele explica que “a senha dos Querubins egípcios, das Saturnálias romanas, das Bacanais gregas, da festa dos Inocentes e dos Loucos de que falam as crônicas da Idade Média é a mesma do carnaval de Veneza, de Roma, do Rio de Janeiro e das tribos amazônicas”.
Durante as Saturnálias, ou a Saturnália, acredita-se que as pessoas se comportavam incontrolavelmente. As Bacanais gregas, festas para honrar o deus Baco, também são descritas como ocasiões de bebedeira e revelia. Qualquer pessoa que conheça o Carnaval brasileiro (ou qualquer outro atual) pode facilmente encontrar semelhanças entre esses eventos de outrora e estas festas. Outra semelhança que Morais Filho destaca é que “entre todos os povos encontram-se as mascaradas”. Para ele, “o carnaval implica o uso da máscara e dos disfarces”. Até na igreja católica havia “espetáculos e divertimentos de teatro, e não apenas se introduzem nesses espetáculos e nesses divertimentos monstros mascarados, mas ainda, em certas festas, os diáconos, os padres e os subdiáconos permitem-se a liberdade de fazer toda a casta de loucuras e palhaçadas”.
Luiz Jorge de Azevedo Lobo, no livro de fotografias Rio - Carnaval Fantástico, de Alain Draeger, explica que “alguns dizem que a palavra ‘carnaval’ é proveniente da expressão carrum navalis, uma balsa alegórica, no formato de um barco, que desfilava pelas ruas com dançarinos em cima durante os animados festivais romanos”. Lobo ressalta que “outros dizem que a origem da palavra pode ser encontrada na expressão carne vale (adeus a carne), que descreve o dia antes do jejum de 40 dias da quaresma: naquela época tinha um festival que normalmente começava no Domingo e durava três dias até o dia da carne vale. Esta Terça-feira era a última vez em que eles podiam comer qualquer coisa por 40 dias”.
Lavinia Dobler diz que “a estação do Carnaval tradicionalmente começa na epifania, dia 6 de Janeiro, e termina à meia-noite da Terça-feira de Carnaval”. Ela nos lembra que que “em muitas igrejas, na Quarta-feira de cinzas, cinzas são colocadas na testa das pessoas para lembrar-lhes que Adão, o primeiro homem, foi feito do pó, e que os corpos dos homens retornarão ao pó, ou às cinzas, quando eles morrerem”.
Lobo comenta que o primeiro Carnaval brasileiro aconteceu em 1641, para celebrar a coroação do rei João IV, que restituiu a monarquia a Portugal. “Esse festival se repetia anualmente e, nele, elementos dos folclores portugueses e africanos foram incorporados”, escreve Lobo. Desde então, o Carnaval brasileiro tem mudado bastante e na maioria dos lugares não se usa nem mais máscaras, pelo menos não aquelas de antigamente. O ritual que durava três dias e depois incluiu o Sábado como o quarto dia, agora chega a durar uma semana em algumas cidades brasileiras, às vezes passando da Quarta-feira de cinzas.
Apesar dessas diferenças, o Carnaval brasileiro como um todo, ainda se assemelha muito às Saturnálias romanas e as Bacanais gregas. Algumas dessas diferenças são fundamentais para caracterizarmos esse fenômeno sociológico como um ritual utópico. O Carnaval brasileiro é um texto que foi escrito há muito tempo atrás e se reescreve, ou melhor, é reescrito todo ano para acomodar as mudanças na sociedade de Terceiro Mundo capitalista brasileira. É um texto escrito pelos desejos utópicos inconscientes da sua população, que, alguns acreditam, tem o estado e a máquina capitalista como co-autores.
O Carnaval é um evento importante para os brasileiros. Esse nosso festival é um ritual pelo qual esperamos todos os anos. É um momento de fuga da realidade, onde as regras comuns do dia-a-dia não têm valor e onde as pessoas se permitem um comportamento que segue as regras imaginárias de um mundo que queríamos que fosse “eterno”, como diz uma música baiana - o mundo do carnaval.
Luis Delgado Gardel, em Escolas de Samba, afirma que “nenhuma pessoa justa pode deixar de considerar o valor terapêutico do Carnaval. Esse valor é evidenciado pelo bom humor, cordialidade, ausência de certas complicações que pesam tanto sobre algumas nações e a insignificante ocorrência de desgraças, que são apenas algumas das invejáveis características das pessoas que diretamente ou indiretamente participam da festa brasileira”. Gardel acrescenta: “o Carnaval parece funcionar como um vestiário enorme, onde cada participante pode deixar suas preocupações por algum tempo. Mais tarde ele vai colocar o peso de volta nas suas costas e começar de novo, reabastecido e revigorado, a tarefa séria e angustiante que é ganhar o pão de cada dia”.
Como podemos notar, o Carnaval é o momento em que os brasileiros e os turistas que para aqui vêm, coletivamente, se livram do seu “excesso de privação”. A festa funciona como uma válvula de escape que, aliada à boa natureza do nosso povo, alguns diriam, impede as “revoltas perigosas” previstas por Freud. Metaforicamente falando, numa linguagem kardecista, é uma desobsessão coletiva, que ajuda o nosso país a manter a sua imagem de alegria e, a cada ano, renova as nossas esperanças em um futuro melhor.
O Carnaval brasileiro é uma utopia difícil de ser analisada, por ser um ritual e por ser coletivo. Como Roberto da Matta explica: “É o momento extraordinário que nos possibilita focalizar em um aspecto a realidade e, desse modo, mudar o seu significado diário, ou até dar-lhe um novo significado geral”. Para ele, “a característica distintiva do ritual parece ser a dramatização; (...) tudo que é elevado e enfocado pela dramatização (...) é normalmente deslocado. Conseqüentemente, pode atribuir-se um significado novo e surpreendente que pode nutrir reflexão e criatividade, (...) “isso é o que acontece nas paradas do Carnaval”. E continua: “O Carnaval é uma das instituições perpétuas que têm permitido que os brasileiros sintam (mais do que entendem de forma abstrata) a sua continuidade específica enquanto uma entidade social e política distinta, através dos tempos”.
Portanto, o Carnaval brasileiro deve ser entendido como um ritual, como um fenômeno sociológico, como um texto e, também, como diriam Gilles Deleuze e Félix Guattari, como uma máquina abstrata. O Carnaval brasileiro poderia ser classificado, de acordo com a definição de Deleuze e Guattari, como uma máquina abstrata de mutação, “que funciona decodificando e desterritorializando. É o que atrai as linhas de fuga: elas guiam os fluxos de quantum, garantem a conexão-criação de fluxos e emitem novo quanta. Elas estão essencialmente em um estágio de fuga...”. É por ser uma máquina abstrata que esquecemos tão facilmente “os elementos desse mundo real” ressaltados no Carnaval.
Impressões erradas podem ser formadas facilmente por esse “estágio de fuga” que caracteriza bem o Carnaval brasileiro. Luis Delgado Gardel comenta que, “visto de fora [o Carnaval brasileiro], pode parecer uma manifestação colossal de irresponsabilidade e uma grande causa de perdas graves na produção econômica. Durante o Carnaval muitos fluxos são interrompidos no Brasil, incluindo os capitalistas. A maioria das pessoas não trabalha, e lojas, bancos, shopping centers e escolas estão fechadas, o que pode causar a alguns uma impressão de anarquia. Entretanto, um novo conjunto de fluxos são intensificados, ou criados para a ocasião. O turismo, por exemplo, cresce enormemente. Os blocos carnavalescos e as escolas de samba normalmente cobram muito dinheiro para seus integrantes e hoje em dia estas empresas funcionam o ano inteiro. O festival hoje é mais do que uma simples manifestação popular de alegria. É um negócio muito lucrativo que envolve diversos setores da economia brasileira durante o ano todo, principalmente depois do aumento das micaretas e carnavais fora de época.
Apesar dessas novas características do carnaval, incluindo a sua transformação num bem de consumo e a sua conotação política, sua característica de ser uma “válvula de escape” continua alimentando a dimensão utópica. Durante o Carnaval, os brasileiros constituem uma sociedade com base em instintos e desejos. O país torna-se um tipo de “terra do sonho”. Os leitores do texto desse Carnaval também são seus autores, mas, ainda assim, eles não são desafiados a mudar esse texto e realizar a sua utopia. DaMatta comenta que “o Carnaval, como tudo que é verdadeiramente popular, é um momento antitexto. Não se precisa ler para brincar. Não há um livro que nos ensine a pular num salão ou nas ruas”. Todavia, é claro que DaMatta pede uma leitura, ou talvez uma releitura desse texto que, eu proponho, é o Carnaval. Um texto que é reescrito por autores muito diferentes, mas, infelizmente, apenas uma parte desses autores parece estar consciente da maneira correta de ler esse texto. A outra, parece recusar a realidade.
Não vou negar que eu, carnavalesco dos bons, também “queria que essa fantasia fosse eterna”, mas penso que, para tal, precisamos mudar a nossa leitura do texto do Carnaval. Utopias podem se realizar? Não sei responder, mas o nosso país pode ser um país melhor. Para tal, é preciso, entre tantas outras coisas, também mudar a leitura e a escrita desse fenômeno que DaMatta chama de “antitexto”. Precisamos sonhar sim, mas precisamos também agir, começando por entender o que está acontecendo ao nosso redor para que possamos buscar alternativas melhores. Somente após entendermos o que engloba a nossa cultura, a nossa identidade, os nossos desejos, poderemos começar a planejar um “segundo mundo” melhor. Olhar para o Carnaval de forma diferente é uma maneira de começar isto. A partir dessa compreensão mais abrangente, talvez o “eu-topos, a região de felicidade e perfeição”, se unirá ao “ou-topos, a região que não existe em lugar algum”. Apenas quando todas as máscaras caírem, ou pelo menos soubermos da sua existência, apenas quando tivermos uma autoconsciência verdadeira e crítica, poderemos começar a mudar a realidade e, quem sabe, realizar a nossa utopia. Feliz Carnaval!
Antônio Luciano de Andrade Tosta é professor da Uneb, bacharel e licenciado em Letras pela Ufba; mestrando em Literatura Comparada pela State University of New York, na cidade de Buffalo (EUA), como bolsista do Programa Fulbright. Excertos de ensaio
Texto : Antônio Luciano Tosta