CÁRACTER ESTILISTA DO CARNAVAL
Historiadora mostra que festa aparentemente democrática,
teve seu perfil forjado pelas classes dominantes dos anos 20 e 30.

Sinônimo de alegria, de descontração, de espontaneidade e de quebra de regras, o Carnaval é a festa nacional que mais reflete a identidade do povo brasileiro. Afinal, em que outra data comemorativa negros e brancos, pobres e ricos estão lado a lado na avenida, compartilhando os mesmos valores culturais? . É o que revela o resultado de uma pesquisa realizada pela historiadora Zélia Lopes da Silva, professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (FCL), Campus de Assis

A pesquisa, que avalia o carnaval paulista entre os anos de 1923 a 1938, período em que a festa dá sinais de redefinição, mostra que o percurso do carnaval não foi tão democrático quanto se supõe. Na verdade, essa festa pagã sempre passou pelo crivo das elites no poder. "Antes da República, na época do Entrudo, a festa já era combatida por uma parte das autoridades e das elites, por considerarem seus jogos sujos, perigosos e grosseiros", conta a pesquisadora.

Em seu lugar nasceu o chamado Carnaval Elegante. Feito para o divertimento da elite. Esta nova fase privilegiou os bailes de máscaras, os préstitos das grandes sociedades carnavalescas, com seus ricos carros alegóricos, e os corsos, desfiles de carros praticados pelas famílias endinheiradas.

Em sintonia com os desejos da elite de refinamento e de adesão aos parâmetros de modernidade, o Carnaval Elegante acabou por instituir regras claras para a participação da festa de rua.

E o Entrudo, que ainda dividia palco com o Carnaval Elegante, foi combatido com prisões e multas. Tornou-se obrigatória a inscrição na prefeitura ou na polícia, das sociedades, blocos ou grupos, e o pagamento de taxas para quem quisesse desfilar. "As pesadas interdições recaíram duramente sobre as sociedades e blocos populares que, além do registro oficial, eram obrigadas a permitir que seus membros fossem revistados pelas autoridades antes de saírem às ruas", conta a pesquisadora. Além disso, os espaços públicos não eram tão públicos, pois as avenidas principais destinavam-se ao corso das famílias endinheiradas e, aos desfiles do chamado Grande Carnaval das sociedades carnavalescas, também da elite. Cabia as classes populares o papel de espectador ou, então, colocar seus blocos nas ruas marginais da cidade.

PRESSÃO POPULAR
Mas o Carnaval, embora ainda fosse uma festa organizada para o divertimento da elite, mobilizava a população. Assim, ano após ano, as ruas foram teimosamente invadidas por grupos, blocos e mascarados, mesmo que tivessem de se sujeitar às imposições legais. Esse crescente interesse, que refletia o desejo de um espaço democrático, acabou por favorecer a criação de vários blocos populares, que surgiram ao longo dos anos 20 e ampliaram-se na década de 30, época em que o Carnaval sofreu profundas modificações. Mas se por um lado a incorporação dos segmentos populares foi inevitável, por outro a elite não deixou por menos e determinou o padrão estético da festa, que era baseado no seu gosto refinado pelo Carnaval de luxo. Tanto é que os desfiles com concurso e premiação, que começaram a ser promovidos ao longo dos anos 30, tinham como jurados os artistas plásticos da época. De democrático, o novo perfil do Carnaval talvez só tenha incorporado o samba, como música, e permitido a participação das classes populares.

A incorporação do carnaval popular ao conjunto dos festejos, que sinaliza as pressões de segmentos das elites e das classes populares por mudanças na política, na educação e nos valores da sociedade brasileira, também marca o interesse econômico do comércio, da indústria e dos veículos de comunicação. E a festa passa a ser encarada como um excelente negócio. Para a pesquisadora, a imposição de um modelo único para o Carnaval acabou por destruir grande parte das expressão espontâneas dos foliões, que antes se organizavam e saíam para a rua com o único intuito de divertir-se e divertir o outro. "Tornou-se cada vez mais difícil a metamorfose do folião, de sujeito a personagem, pois o uso da fantasia e da máscara, com o objetivo de satirizar tudo e a todos, foi definitivamente abolido", finaliza a pesquisadora.

Zélia Lopes da Silva
Historiadora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (FCL)