SALVADOR É UMA LINDA CANÇÃO
São Salvador
Bahia de São Salvador
A terra do Nosso Senhor
Pedaço de terra que é meu
São Salvador
Bahia de São Salvador
A terra do branco mulato
A terra do preto doutor
São Salvador
Bahia de São Salvador
A terra do Nosso Senhor
Do Nosso Senhor do Bonfim
Ô Bahia
Bahia, cidade de São Salvador
Bahia, ô, Bahia
Bahia, cidade de São Salvador.
A cidade é a residência oficial de múltiplas vidas, de alegrias, tristezas, revelações, paixões, enfim ela guarda dentro de si o germe da sensibilidade humana, os segredos de cada pessoa que a habita, e junto com elas torna-se cúmplice de seus defeitos e virtudes. Por mais que as pessoas queiram se esconder das suas próprias verdades e sentimentos, terá sempre ao seu lado a figura da cidade a lhe ouvir e escutar suas dúvidas e lamentações, pois realizando isso ela também convida seus moradores a dividir as angústias e os sofrimentos que o tempo lhe impõe.
A cidade chora ao ver seus filhos mais queridos irem embora, fica mais triste, perde um pouco o seu viço, mas permanece altiva, pois se deixar o vigor de suas transformações e o progresso lhe abater irá sucumbir, como já aconteceu e acontece com tantas outras cidades mundo a fora. É preciso resistir, não se deixar levar pelo sofrimento, ser vibrante, comunicativa, mas conservando sua história e ter nela a sua referencia maior, afinal foi com os heróis do passado que ela viu-se crescer, frutificar seus frutos de talento, chorar junto com eles e alegrar-se nos momentos inesquecíveis de sua longa trajetória. Enfim, ela seguiu fazendo sua própria história e não contente com isso carregou consigo a história de quem lhe quis bem, de quem a cantou, transformou em poesia seu sofrimento e despejou esperanças em suas incertezas. Só os filhos amados é que traduzem com tamanha sensibilidade os mais íntimos sentimentos de sua mãe, pátria de afeto e carinho que lhes embalou e ensinou-lhes os primeiros passos, assim é a cidade, testemunha dos momentos iniciais de tantos que lhe fizeram imortal, restituindo os momentos intraduzíveis de felicidade que ela lhes proporcionou, e divulgando-os agradecido.
A configuração da cidade caminha por várias épocas, desde o esplendor dos sobrados por onde andaram damas, senhorios, escravos e senhores, até os modernos edifícios onde continuam andando uma multidão de pessoas, mas sem o apego e as tradições de ontem, pois há uma crise de identidade na cidade, e é preciso observar isso com muito cuidado antes que confundam preservação material com o bem imaterial que é a sua própria alma, e que esta necessitando de mais carinho e afeição.
Quem faz a cidade pulsar são seus filhos num vai e vem constante em busca de seus destinos tendo nela o olhar vigilante a pedir a todo instante que tenham mais calma e paciência diante da vida, contudo, são eles, os artistas, que percebem o sentimento da cidade, sua sensibilidade, ternura, carinho e retribuem tudo isso em forma de arte, pintando-a, declamando-a, e cantando suas belezas, divulgando assim seus hábitos, costumes, malemolências, e retratando-se nisso tudo, porque a cidade somos todos nós e todos nós formamos o caráter social da cidade, afinal de contas, ela é a nossa vida a pulsar, a demonstrar o vigor da existência e os primeiros passos rumos a idade madura e consciência plena da realização cidadã, vamos então cantá-la, verso por verso através das letras das canções que a embalaram, feitas por seus filhos queridos, alguns adotados, e conhecer assim pouco mais a sua essência, como já disse, a sua alma.
Um dia um poeta a viu e falou que Salvador era a cidade das ladeiras, por elas passava toda a sua história, não há no mundo local com tantos sobes e desces, afinal ela é uma das poucas que possui dois andares, e para a eles ter acesso e percorrê-los é necessário subir as suas ladeiras, percorrer as suas encostas, verificar que a cada local visitado reside uma história, demonstrada por seus habitantes e as construções que os abrigam juntamente com os monumentos que a fazem imponente, humilde, e presente em nossos corações. Vamos flanar pela cidade, conhecer suas ladeiras, deixar a emoção fluir e a imaginação penetrar na nossa mente, pois foi por conhecê-la tão bem, ser dela um filho digno, que um dia um poeta do povo, Ederaldo Gentil a cantou de forma tão completa, subindo e descendo seus caminhos, as suas infinitas e inesquecíveis "Ladeiras".
É pau, é pedra
É pedra, é pau
Cascalho subindo degrau
Do Pilar, do Pelourinho,
Da Palma, do Gravatá,
Dos Contentes, do Mirante,
Dos Perdões, do Calabar,
Do Carmo, da Carmosira,
Saveiros, da Conceição,
Da Lenha, da Independência,
Romeiros, do Taboão,
Do Limoeiro, do Jenipapeiro,
Do Pepino, da Jaqueira,
Da Lama, do Monturo,
Dos Galés, da Gameleira,
Poeira, do Canto da Cruz,
Da Capelinha, do Pau da Bandeira
É pau, é pedra,
É pedra, é pau
Cascalho subindo degrau
Da Favela, do Queimadinho,
Do Alto do Ferrão, Candeal, do Sobradinho,
Do Mato Grosso, da Goméia,
Da Praça, do Bom Juá,
Do Arco, das Sete Portas,
De Prata, do Paquetá,
Das Hortas, das Laranjeiras,
Baronesa, do Boqueirão,
Aflitos, da Liberdade,
Desterro, da Solidão,
Do Bogum, do Bonocô,
Da Montanha, de Nazaré,
Nanã, do Aquidabã,
Do Alto, do Candomblé
É pau, é pedra
É pedra, é pau
Cascalho subindo degrau.
Mas a cidade brilha em sua miscigenação, em toda a sua democracia religiosa onde convivem brancos, pretos e mulatos, todos unidos em prol de uma cultura singular, que a torna tão peculiar a quantos a visitam, pois nela habita todas as crenças, e sua religiosidade cantada em prosa e verso, proclamou aos quatro ventos que em seu perímetro existem 365 igrejas, uma para cada dia do ano, lenda ou realidade o fato é que a fama se espalhou e não há quem a visite que não fique intrigado com tantas construções religiosas, se contarem não conseguem chegar a um número final, então fiquemos com o poeta que resolveu dar por terminado a discussão ou a fez aumentar, deixando a sugestão da dúvida no ar, mas reafirmando seu caráter de símbolo de tradições religiosas. Assim é Salvador, também conhecida como a cidade da Bahia, ou simplesmente Bahia, a terra de todos os santos, bendito seja, Dorival Caymmi.
Trezentas e sessenta e cinco igrejas
Na Bahia tem
Numa eu me batizei
Na segunda eu me crismei
Na terceira eu vou casar
Com a mulher que eu quero bem
Se depois de eu me casar
Me nascer um bacuri
Vou-me embora pra Bahia
Vou batizar no Bonfim
Mas se for me parecendo
Que os meninos vão nascendo
Por cada uma igreja que tem lá
Sou obrigado a comprar minha passagem
Pra voltar pra cá.
A cidade de Salvador encanta a todos que a visitam, muitos se tornam seus filhos adotivos e para ela devotam um carinho todo especial, pois se inebriam de sua beleza, paisagens, costumes e principalmente de sua gente, que representam seu sentimento maior, acolhendo com ternura todos os que a visitam . Mas se a cidade tem suas ladeiras e igrejas, suas ruas também merecem a atenção dos artistas, aqueles que captam sua sensibilidade mais pura e a traduzem de maneira lírica e sentimental, imortalizando um recanto bucólico e fazendo-o referência mundial, não só pela sua beleza plástica, mas sobretudo pela forma poético/musical que traduz esse sentimento, é o homem fazendo sua história tendo a cidade como testemunha, e inspirando os artistas, vejamos sobre esse assunto o que diz Robert Moses Pechman, em Olhares sobre a cidade.
“Querendo desvendar a aventura humana o artista se depara com a cidade e seu caldal de problemas, conseqüências do impacto da urbanização/industrialização sobre a vida de todos.
Escondida em seu enigma, desafia o artista a decifrá-la, exigindo dele um olhar que vá além das aparências e toque a alma das ruas. É portanto, da alma das ruas que o artista retirará a matéria prima de sua obra”.
Foi percebendo a alma das ruas, que o compositor mineiro, Ary Barroso adotou a cidade como uma de suas filhas mais queridas, sobre ela debruçou todo seu sentimento, e a traduziu de forma esplendorosa, fazendo com que muitos de inúmeros lugares mundo a fora a conhecessem e pudessem desfrutar todo seu encantamento, mas onde começou tudo isso? Numa rua, "Na Baixa do Sapateiro", onde ele retirou a matéria prima de sua essência mais arrebatadora e transformou-a em poesia e musicalidade, imortalizando-a.
Ai, o amor, ai, ai
Amor, bobagem que a gente não explica, ai, ai
Prova um bocadinho, ôi, fica envenenado, ôi
E pro resto da vida é um tal de sofrer, olará, olerê
Ôi, Bahia, ai, ai
Bahia que não me sai do pensamento, ai, ai
Faço o meu lamento ôi, na desesperança, ôi
De encontrar nesse mundo o amor que eu perdi
Na Bahia, vou contar:
Na Baixa do Sapateiro encontrei um dia
A morena mais frajola da Bahia
Pediu-me um beijo, não dei
Um abraço, eu sorri
Pediu-me a mão não quis dar...e fugi
Bahia, terra da felicidade
Morena, eu ando louco de saudade
Meu Senhor do Bonfim
Arranje outra morena igualzinha pra mim.
O espaço da cidade é pontuado por múltiplas diferenças e elas se estabelecem ao longo de sua trajetória, os hábitos e costumes de uma sociedade, renovam-se de acordo com as características históricas de cada tempo, e desse modo a relação das pessoas com seu espaço urbano muda de acordo com esse desenvolvimento ou melhor com a readaptação de usos e costumes num mesmo local, todas essas transformações a cidade presencia e revela em sua forma de se relacionar com elas, sem, contudo, perder a identidade que lhe resta e lhe da garantia única de preservação que a faz singular, sobre isso assim se expressa Dea Fenelon Ribeiro no texto Cidades.
“(...) Se compreendermos a cidade como o lugar onde as transformações instituem-se ao longo do tempo histórico com características marcantes, queremos lidar com estas problemáticas como a história de constantes diálogos entre os vários segmentos sociais, para fazer surgir das múltiplas contradições estabelecidas no urbano, tanto o cotidiano, a experiência social, como a luta cultural para configurar valores, hábitos, atitudes, comportamentos e crenças”.
Essas manifestações comportamentais que reafirmam a pluralidade de costumes de uma cidade se refletem no seu processo de desenvolvimento e registram ao longo da história as características de seu progresso e as mudanças ocorridas na população que a habita. Gilberto Gil na música "Tradição" propõe uma reflexão e demonstra como se portava a comunidade de Salvador diante dessas mutações que a ela eram impostas, é a cidade buscando seus caminhos, e erguendo-se das entranhas de seus preconceitos, a Bahia civiliza-se ou então revisa seus conceitos, diante da sanha inexorável do tempo, onde sua capital tudo vê, registra, e preserva.
Conheci uma garota que era do Barbalho
Uma garota do barulho
Namorava um rapaz que era muito inteligente
Um rapaz muito diferente
Inteligente no jeito de pongar no bonde
E diferente pelo tipo
De camisa aberta e certa calça americana
Arranjada de contrabando
E sair do banco, e desbancando, despongar do bonde
Sempre rindo e sempre cantando
Sempre lindo e sempre, sempre, sempre, sempre
Sempre rindo e sempre cantando
Conheci essa garota que era do Barbalho
Essa garota do barulho
No tempo que Lessa era goleiro do Bahia
Um goleiro, uma garantia
No tempo que a turma ia procurar porrada
Na base da vã valentia
No tempo em que preto não entrava no Bahiano
Nem pela porta da cozinha
Conheci essa garota que era do Barbalho
Na lotação de Liberdade
Que passava pelo ponto dos Quinze Mistérios
Indo do bairro pra cidade
Pra cidade, quer dizer, pro largo do Terreiro
Pra onde todo mundo ia
Todo dia, todo dia, todo santo dia
Eu, minha irmã e minha tia
No tempo quem governava era Antonio Balbino
No tempo que eu era menino
Menino que eu era e veja que eu já reparava
Numa garota do Barbalho
Reparava tanto que acabei já reparando
No rapaz que ela namorava
Reparei que o rapaz era muito inteligente
Um rapaz muito diferente
Inteligente no jeito de pongar no bonde
E diferente pelo tipo
De camisa aberta e certa calça americana
Arranjada de contrabando
E sair do banco, e desbancando, despongar do bonde
Sempre rindo e sempre cantando
Sempre lindo e sempre, sempre, sempre, sempre
Sempre rindo e sempre cantando.
As transformações urbanas ocorridas numa cidade modificam seu espaço físico e conseqüentemente a relação das pessoas com ela, provocando em várias ocasiões momentos de nostalgia como a buscar um elo perdido, uma referencia que se foi, uma identidade distante, isso é muito comum quando monumentos arquitetônicos são destruídos seja pela mão do homem, ou pela própria natureza. Salvador no ano de 1964 passou por um período de tormentas e saudade diante do incêndio, alguns dizem que foi provocado por questões político/imobiliárias, que destruiu a feira de Água Meninos na parte baixa da cidade. Símbolo de grande tradição popular, ela aos poucos foi refeita, porém nunca mais conservou o charme dos tempos de outrora. Na ocasião a cidade chorou, viu uma parte de sua história e de sua gente permanecer apenas como lembrança, ficou a saudade, o talento do poeta e do compositor que viu e registrou o sentimento irreparável da perda, assim Capinam e Gilberto Gil unem-se ao coro dos órfãos e a imortaliza em versos e canção.
Na minha terra, Bahia
Entre o mar e a poesia
Tem um porto, Salvador
As ladeiras da cidade
Descem das nuvens pro mar
E num tempo que passou
Toda a cidade descia
Vinha pra feira comprar
Água de Meninos, quero morar
Quero rede e tangerina
Quero peixe desse mar
Quero vento dessa praia
Quero azul, quero ficar
Com a moça que chegou
Vestida de rendas, ô
Vinda de Taperoá
Por cima da feira, as nuvens
Atrás da feira, a cidade
Na frente da feira, o mar
Atrás do mar, a marinha
Atrás da marinha, o moinho
Atrás do moinho, o governo
Quis a feira acabar
Dentro da feira, o povo
Dentro do povo, a moça
Dentro da moça, a noiva
Vestida de rendas, ô
Abre a roda pra sambar
Moinho da Bahia queimou
Queimou, deixa queimar
Abre a roda pra sambar
A feira nem bem sabia
Se ia pro mar ou sumia
E nem o povo queria
Escolher outro lugar
Enquanto a feira não via
A hora de se mudar
Tocaram fogo na feira
Ai, me diga, minha sinhá
Pra onde correu o povo
Pra onde correu a moça
Vinda de Taperoá
Água de Meninos chorou
Caranguejo correu pra lama
Saveiro ficou na costa
A moringa rebentou
Dos olhos do barraqueiro
Muita água derramou
Água de Meninos acabou
Quem ficou foi a saudade
Da noiva dentro da moça
Vinda de Taperoá
Vestida de rendas, ô
Abre a roda pra sambar
Moinho da Bahia queimou
Queimou, deixa queimar
Abre a roda pra sambar.
Por seus doces mistérios e tradições é que Salvador foi retratada por seus filhos e amantes de maneira vigorosa, sendo talvez a cidade brasileira mais cantada. Essa magia que fascina é que a faz ter um ar diferente, uma sonoridade própria e um encantamento único. Traduzir todo seu esplendor é difícil, como é difícil também conhecê-la por dentro com suas contradições, contudo, uma coisa é unânime para todos que a conhecem ou nela vivem, é a sua democracia cultural, o jeito manso, cordial e alegre de seu povo, o vento, o sol, o mar, o céu e a brisa que nela existe, pois, mesmo com todos os problemas que uma cidade do seu tamanho enfrenta, é impressionante sua capacidade de resistir, de subsistir e continuar linda. Assim também pensava um de seus mais ilustres admiradores, o poeta Vinícius de Moraes.
Um velho calção de banho
O dia pra vadiar
Um mar que não tem tamanho
E um arco-íris no ar
Depois na praça Caymmi
Sentir preguiça no corpo
E numa esteira de vime
Beber uma água de coco
É bom
Passar uma tarde em Itapoã
Ao sol que arde em Itapoã
Ouvindo o mar de Itapoã
Falar de amor em Itapoã
Enquanto o mar inaugura
Um vento novinho em folha
Argumentar com doçura
Com uma cachaça de rolha
E com o olhar esquecido
No encontro de céu e mar
Bem devagar ir sentindo
A terra toda a rodar
É bom
Passar uma tarde em Itapoã
Ao sol que arde em Itapoã
Ouvindo o mar de Itapoã
Falar de amor em Itapoã
Depois sentir o arrepio
Do vento que a noite traz
E o diz-que-diz-que macio
Que brota dos coqueirais
E nos espaços serenos
Sem ontem nem amanhã
Dormir nos braços morenos
Da lua de Itapoã
É bom
Passar uma tarde em Itapoã
Ao sol que arde em Itapoã
Ouvindo o mar de Itapoã
Falar de amor em Itapoã.
TEXTO : Luiz Américo Lisboa Junior - Itabuna, 11 de abril 2004