 Com o consentimento do passageiro, o taxista aumenta o volume do rádio ao ouvir os primeiros versos da música que começa a tocar. “Sementes de cores vivas, Que acendem novas recordações...” O batuque no volante serve de acompanhamento para a vigorosa interpretação do motorista metido a crooner que canta com esmero em um falsete rouco de bem-te-vi asmático. “...E o vento solta faíscas Bordando belas constelações...” Ao chegar o refrão, o condutor do veículo já se sente como se estivesse a bordo de um trio elétrico. “...Deixa que o fogo ‘semei’ na escuridão O amor, uô, uô ô...” Ainda ofegante, o homem resolve mostrar que é um profundo conhecedor da música baiana da década de 80. Explica que a canção se chama “Sementes” e fora composta em 1985. “Foi a melhor fase do Chicletão, lembra? Essa aí é da época de Missinho. Lembra de Missinho? O cara era bom. Essa música é dele...”. O passageiro do táxi acompanha a explanação com um sorrisinho discreto. O taxista prossegue. “Bell era só o baixista. Missinho é que era o cara! Lembra dele?”. Diante da pergunta, vem a revelação. “Rapaz, fico feliz que você goste tanto assim da música. Eu sou Missinho”, diz o carona enquanto paga a corrida. O motorista não leva a sério, ri e se despede. “Bem que você queria ser Missinho, hein?!”, provoca. Edmilson de Amorim Ferreira não quis insistir. Aos 47 anos, acostumou-se com a dissociação freqüente entre sua imagem e as canções que compôs. Escolhas e circunstâncias fizeram-no saborear o sucesso para depois se transformar em um nome sem rosto. Tal qual os protagonistas dos livros de Paul Auster – ou os personagens de alguns filmes de Nani Moretti e Woody Allen – a história de Missinho é contada a partir de acontecimentos aparentemente fortuitos e decisões intempestivas que determinaram o sentido de uma existência repleta de reviravoltas. O QUE PASSOU, PASSOU Os dias de celebridade de Missinho restringiram-se aos anos de 1981 a 1986. Após este período, caiu no ostracismo, tornando-se um daqueles artistas que, segundo o humorista e escritor Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta), despontam para o anonimato. O início do enredo fica a critério de quem se propõe a relatar a trajetória do personagem. Poderia ser em 1961, quando Missinho nasceu, ou em 1977, ano em que começou a tocar guitarra em bailes e festas pelo interior da Bahia. Outra possibilidade, talvez a mais oportuna, seja relembrar o dia em que o acaso o colocou no caminho dos irmãos Washington (Bell), Waldemar (Wadinho) e Wilson, em 1980. Eles estavam em Feira de Santana e ficaram bastante impressionados ao ver, em cima de um trio elétrico, o desempenho de um vocalista cabeludo que dedilhava habilmente uma guitarra baiana. O talento de Missinho entusiasmou de tal forma os três irmãos que, após o show, veio o convite para que o jovem artista – na época com 19 anos – passasse a fazer parte da banda que eles estavam formando. Convite aceito, os Scorpius ganharam, de uma vez só, um cantor, um compositor e um guitarrista. No ano seguinte, os Scorpius mudaram de nome e surgiu o Chiclete com Banana. A turma produzia muito, mas vendia pouco. Os discos “Traz os Montes” e “Estação das Cores” foram um fracasso e a gravadora Continental já planejava romper o contrato com a banda. O distrato só não ocorreu por causa de uma canção composta por Missinho. “O Mistério das Estrelas” (1983), primeiro hit do Chiclete, impulsionou a carreira do conjunto. O LP Energia vendeu mais de 100 mil cópias, sendo premiado com o disco de ouro, honraria restrita a poucos artistas nacionais naquela década. O Chicletão virou um fenômeno e Missinho, o astro da banda. “O pessoal pensava que eu era o líder, porque eu aparecia mais que os outros e me destacava”. O cantor de longos cabelos lisos e voz aguda era o mais assediado pelas garotas, fato que lhe causava desconforto em algumas situações, como no dia em que teve as roupas rasgadas ou quando não conseguiu fazer compras num shopping sem ser importunado pelas fãs. “Acho que isso gerou uma ciumeira, até porque os caras [Bell, Wadinho e Wilson] eram os donos. E o pior é que eu detestava aquilo tudo. Odeio badalação”. A falta de vocação para o estrelato e o relacionamento em processo de desgaste com os companheiros de banda contribuíram para que Missinho tomasse uma decisão que representou um momento-chave na vida dele. “Não dava mais. O clima era ruim e eu estava cansado daquela mesmice”, conta. ETERNO ENUANTO DUROU Aos 25 anos, o ex-chicleteiro partiu para a carreira solo, provavelmente imaginando que manteria o prestígio em alta, assim como o lucro da gravadora que o acolhesse. Não foi o que aconteceu. Por ingenuidade ou falta de percepção da nova realidade que se apresentava, Missinho não se deu conta de que o espaço nos veículos de comunicação ficaria mais restrito. “A ‘máfia’ não deixa tocar nada que não seja do grupinho do “jabá’. Quem não está no esquema, não entra nas rádios. Até hoje é assim”, queixa-se. “Máfia” é o conjunto de artistas e empresários ligados aos principais blocos de carnaval e “jabá” é o agrado que estimula emissoras de rádio a ter especial predileção por algumas canções e ojeriza por outras. Enquanto Missinho tentava construir uma carreira independente, sem vínculos com a “máfia”, o Chiclete com Banana tornava-se mais popular a cada ano. A imagem de Missinho foi, pouco a pouco, sendo substituída por outra, que se impôs como ícone do Axé Music. Entra em cena um sujeito de sorriso largo, barba no rosto e bandana colorida cobrindo uma presumível calvície jamais comprovada. A voz é possante e capaz de provocar histeria coletiva quando amplificada pelas caixas de som de um trio elétrico. Com Bell nos vocais – antes ele era o baixista –, o Chiclete com Banana ganhou fama no Brasil e até no exterior. O cantor ficou milionário, comprou fazendas, imóveis de luxo e desfila por Salvador em caríssimos automóveis importados, enquanto Missinho se tornou um sujeito de classe média, dono de um carro popular. O Chiclete cobra R$ 300 mil por show, um dos cinco maiores cachês da música brasileira. Missinho não lança um disco há mais de quatro anos e vibra por ter uma canção entre as 50 finalistas de um festival da Rádio Educadora. “O nome da música é Satisfações e foi gravada pela banda Metáfora”, diz com orgulho. Atualmente, Missinho faz shows esporádicos e construiu um estúdio de gravação no terreno de sua casa, mas é graças ao passado que garante a principal fonte de renda. Os direitos autorais das músicas Sementes, Mistério das Estrelas, Lume da Fogueira e Tiete do Chiclete permitem que o músico possa investir na própria carreira artística sem se endividar. “Todo mês pinga um dinheiro do ECAD [Escritório Central de Arrecadação e Distribuição] na minha conta. Eu não consegui ficar rico, mas, diante de tanta dificuldade, eu até que estou bem”. Missinho se esquiva de perguntas sobre a atual formação do Chiclete com um argumento que mistura desprezo e ressentimento. “Não os ouço. O que está rolando agora não me acrescenta nada”. O ex-vocalista da banda sempre considerou os ex-colegas de pouquíssima qualidade técnica como instrumentistas, mas reconhece que, para fazer tanto sucesso, existe um mérito inquestionável, apesar de indecifrável. “Se eu soubesse o segredo, iria montar uma banda e ficar milionário também”, comenta aos risos. DIGA QUE VALEU De chapéu branco na cabeça e a mesma cabeleira comprida dos anos 80, Missinho caminha anônimo por onde passa. Eventualmente se depara com alguém assobiando ou cantarolando algo de sua autoria – e fica feliz. “Eu gosto de música. O glamour não me faz falta. Não estou nem aí se não me reconhecem. Quando eu morrer, o que vai ficar é minha obra”, profetiza. Antes de nos despedirmos, Missinho sugere um título para esta reportagem. “Que tal ‘No Underground do Axé’?”. Respondi que era bom, mas que eu preferia comparar a história dele com a de Pete Best, o baterista que saiu dos Beatles antes do sucesso do grupo e acabou não fazendo parte da maior banda de Rock de todos os tempos. “Pô! Pete Best não tinha talento! Era só o dono dos instrumentos. Com ele, os Beatles não seriam os Beatles”, questionou. “E o Chiclete? Faria sucesso com você nos vocais?”, perguntei. Missinho riu com olhar perdido. “Minha viagem era outra. Tudo que rolou acabou sendo melhor para todos”. PUBLICAÇÃO EXTINTA : Revista Metrópole - número 15 - 24/08/2008 AUTOR : Matheus Santana EDITORA : KSZ |