Caetano Veloso está ficando velho. No show do disco "Cê", que estreou anteontem, no Academia Music Hall de Brasília, por várias vezes o músico -cabelos quase brancos- ajeitou os óculos, indispensáveis para a vista cansada.
Nesse palco, "O Homem Velho", música do disco "Caetano Veloso" (1986), soa autêntica como nunca em sua lírica amarga. Surge na parte inicial do show: "O homem velho deixa a vida e morte para trás/ Cabeça a prumo segue rumo e nunca, nunca mais".
Em seguida, entra "Homem", de trechos como "Eu sou o homem/ pele solta sobre o músculo" e "Só tenho inveja da longevidade e dos orgasmos múltiplos". A idade volta a ser tema, mas a costura de "O Homem Velho" e "Homem" revela mais do que isso. Se, na primeira, a interpretação é circunspecta, quase solene, a segunda se dá em meio ao cinismo e ao deboche em torno do desejo e dos gêneros. Em suma, Caetano canta o sexo, sem perder de vista o humor.
Essa abordagem do sexo - como gozo ou frustração- e as angústias da idade estão presentes no CD, mas ganham leitura mais rica no show, com a alternância de velhas e novas canções, além da aproximação de temas, ora complementares, ora em contradição.
Inspirada em "Ilusão à Toa", de Johnny Alf, a nova e delicada "Amor Mais que Discreto" nos leva a imaginar um amor improvável, encantamento que não se consuma. Antecede "Odeio", música em que todos os prazeres são possíveis (e consumados), porém insatisfatórios ("era o fim, é o fim, mas o fim é demais também").
Esse jogo de duplos, com similaridades e contrastes, não se reduz aos temas: abrange também os parentescos sonoros. Assim, o show de "Cê" traz de volta músicas de "Transa" -distantes 34 anos, os discos se comunicam pela presença de uma banda enxuta e potência que se aproxima do rock. Um dos mais cultuados álbuns de Caetano, "Transa" reaparece em "Nine Out of Ten" e "You Don't Know Me". A primeira, especialmente, recebe versão mais vigorosa.
Meninos
O momento "Transa" é seguido de "Um Tom", do disco "Noites do Norte" (2000). Foi o mote para o cantor evocar Jacques Morelembaum, seu "braço direito" musical nos anos 90.
"Morelembaum me ensinou tanto que agora sou capaz de trabalhar com esses meninos".
Os "meninos" são Pedro Sá (guitarra), Ricardo Dias Gomes (baixo e piano Rhodes) e Marcelo Callado (bateria). Ok, é um louvável gesto de gratidão, mas esse show demonstra como a companhia dessa jovem trinca contribui pra reinventar a carreira de Caetano.
Não é um show de rock, mas a aproximação com o gênero leva a uma reelaboração do repertório, que se abre a mais nuances (pena alguns desajustes de som da casa). Desgastada, "Sampa" revive numa versão menos "sensível", mais obscura. Sem perder o suingue, "Desde que o Samba É Samba" se beneficia de sons distorcidos. "Fora de Ordem" é apresentada no limite do caos, embaralhando discurso e ruído. De resto, versos como "Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína", de "Fora da Ordem", fazem sentido em uma turnê que se inicia na cidade que já carregou a utopia do país.
Ao saudar a capital, aliás, Caetano se lembrou de uma entrevista concedida ao blog do jornalista Jorge Bastos Moreno, na qual falou sobre sua indecisão entre Lula e Alckmin.
Nos comentários no blog, acabou atacado por simpatizantes do PT e do PSDB. Um chamou mais a sua atenção. O internauta concordava com as críticas anteriores e completava: "O Caetano é realmente insuportável, mas o pior mesmo é ouvi-lo tocando violão". Risos entre o público, ele pegou o violão e -sozinho, sorrindo- cantou "A Voz do Violão", de Francisco Alves e Horácio Campos. Aos 64 anos, Caetano talvez nunca tenha sido tão moleque.
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