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Negro Consumo

Quinta-feira de Carnaval nas ruas de Salvador. O ano é 1987.
Um dia antes de os associados do bloco afro Olodum irem para a avenida vestidos de deuses, entoando um canto de exaltação ao antigo Egito, o bloco Mel se misturou ao desfile do Rei Momo e desceu em direção à Praça Castro Alves. Em cima do trio, uma voz feminina pegou o microfone e gritou a frase mágica: "Eu falei faraó, ó, ó!".


A Banda Mel havia saído na frente. Sentiu que o repertório dos blocos afros estava prestes a romper o gueto e, pelo faro, foi parar no Pelourinho, estimulada pelo sucesso que Eu sou negão, de Gerônimo, vinha fazendo nas rádios. Composta por Luciano Gomes dos Santos, que trabalhava como chapista numa oficina mecânica, a canção Faraó, divindade do Egito já havia sido lançada na quadra do Olodum, antes do Carnaval, e se espalhado de boca em boca nas festas de largo.

Como a levada só com percussão parecia "tribal" demais, os músicos da Mel adaptaram a sonoridade de Faraó ao conjunto formado por guitarra, bateria e baixo. Não deu outra: uma demo-tape gravada artesanalmente foi lançada na Itapoan FM pela banda, na voz da cantora Janete, e se transformou no maior fenômeno musical da Bahia nos anos 80. Estava descoberta uma mina de ouro.

E mal o Olodum anunciou o seu tema para o Carnaval de 1988, inspirado na história da colonização da ilha de Madagascar, outra demo-tape entrou às pressas na programação das rádios. Surgia no mercado a banda Reflexu´s, popularizando o samba-reggae Madagascar Olodum e vendendo mais de 750 mil cópias de seu primeiro álbum. Era o boom da negritude baiana, que esteve no auge no período entre 1987 e 1995, com penetração no resto do país.


Ao mesmo tempo em que a indústria cultural especulava, o mercado abria brechas para uma maior expansão socializadora dos blocos afros.

"Os artistas ligados ao trio elétrico tornaram moda o que era contexto e, apesar da distorção, acabaram dando eco ao que já era uma conquista do negro baiano", conta a diretora do Malê Debalê, Lúcia Lobato. O vocalista do Chiclete com Banana, Bell Marques, prefere uma síntese mais romântica: "Naquele período, a Bahia recebeu a música negra de braços, corações e peitos abertos".

Entusiasmo não faltou aos que consumiram à exaustão canções extraídas ou não do repertório dos blocos afros, quase todas buscando inspiração na imagem dos negros, seja protestando contra o racismo, lamentando a morte de Bob Marley ou escancarando o bairrismo de pertencer à capital da negritude brasileira.

Daniela Mercury dizia se orgulhar de ser tratada como a "branquinha mais negra" da Bahia. "Diga yes, diga yes, sou negão!", pedia Márcia Short no seu tempo de Banda Mel. A classe média adorava. Márcia Freire cantava e a maioria branca do bloco Cheiro de Amor repetia: "Ele faz samba na porta do ônibus/ 7-1 Liberdade/ é o negro do Ilê/ Ela dança com a lata na cabeça/ Sua trança é bonita, ela é Badauê".

O modismo acabou - Mas o tempo mostrou que o namoro da indústria baiana com a negritude não passou de um convívio meramente circunstancial. Apesar de a apoteose do samba-reggae ter proporcionado uma identificação dos negros de Salvador com sua própria cultura, através de uma linguagem popular recheada de símbolos, mitos e situações do cotidiano, logo os fomentadores da axé music mostraram suas reais intenções, como resume Gerônimo. "Aquela coisa pura e lírica da negritude havia virado um grande negócio. Mas o mercado sempre impõe uma condição que a gente já conhece: se não está vendendo, deixa de servir".

Quinze anos depois do lançamento de Eu sou negão, já não se ouvem mais nas rádios, nos shows e nos discos de axé music composições que remetam àquele "sentimento de negritude". O produto deixou de vender porque acabou o jogo de sedução midiática, esgotado pela banalização. Como todo Carnaval tem sua Quarta-feira de Cinzas, o modismo caiu na ressaca.

Militante do movimento hip-hop na Bahia, pesquisador musical e professor de literatura do Instituto de Letras da Universidade Católica do Salvador, Nelson Maca ressalta que o único projeto comunitário que essa indústria produziu foi a realização de megaeventos dentro de clubes que não são e nunca foram do povo negro.

"As coisas ficaram desvirtuadas e faltou respeito. Mas, embora as letras de hoje mostrem que a moda passou, o uso da rítmica continua presente. Mesmo utilizada de maneira inconsciente, permanece muito forte", acredita Lazzo. Outros discursos chegaram ao show business, engolindo o consumo do samba-reggae e fazendo emergir com grande força comercial as melosas canções de amor adolescente entoadas por nomes como Netinho, Carla Visi e Ivete Sangalo, numa versão axé para o que já se manifestava nas vertentes neo-sertaneja e do pagode romântico.

A "suingueira e a quebradeira" com sotaque local passaram a dominar a cena na segunda metade dos anos 90, dando destaque à música despolitizada de cantores e compositores negros como Beto Jamaica, Compadre Washington e Xanddy. Os discursos engajados dos reggaes de Edson Gomes perderam espaço. Compositores oriundos dos blocos afros, que viram naquele período uma possibilidade de ascensão social, tentaram expressar outras posturas (não vinculadas à militância) através de seus próprios discos, como Pierre Onasis e Tonho Matéria.

O bloco afro Ara Ketu, que nasceu cultuando os orixás, sofreu uma radical transformação, virando uma bem-sucedida banda comercial, embora seu vocalista Tatau prefira descrever outra imagem: "Nós não nos afastamos das nossas raízes. Preservamos nossa batida percussiva, porém com criatividade, misturando ritmos. Hoje somos uma banda afro pop que tem como grande marca o samba, mas continuamos fazendo um trabalho social em Periperi".

O Olodum ainda teve dias de glória ao gravar um clipe com Michael Jackson, dirigido pelo cineasta Spike Lee, mas passou a viver fases de indefinição musical, ora se aproximando, ora se afastando de sua origem, enquanto a Timbalada e Carlinhos Brown apostaram na mestiçagem, com canções que passeiam entre o romantismo e a auto-exaltação. Nos trios elétricos, apenas Daniela Mercury (também em discos) e Margareth Menezes continuaram dando destaque ao samba-reggae. Quanto às "pioneiras" bandas Mel e Reflexu´s, caíram no ostracismo.

A hora da aliança
Divergências internas e incoerências políticas à parte, as lideranças negras continuam firmes na militância. O discurso do rap (com grupos atuantes em larga escala na periferia) e as alianças entre entidades (tendo à frente os blocos afros) evidenciam a resistência. Representantes do Olodum, Malê Debalê, Ilê Aiyê e Muzenza mantêm um programa com duas horas de duração na rádio Metrópole. Deverão estrear outro em dezembro, na TVE, e conseguiram ter o direito de desfilar mais cedo no Carnaval.


"O grande avanço é exatamente o amadurecimento das entidades no exercício de lidar com as diferenças em prol da aliança. Mais do que uma saída, é uma estratégia de intervenção que vem trazendo resultados tanto na conjuntura cultural como na política para o negro em Salvador", posiciona-se Lúcia Lobato, diretora do Malê. A classe média migrou para o Aeroclube Plaza Show e o Candyall Guetho Square, deixando o Pelourinho para trás.

"A "novidade" virou tradição, perdendo o suposto caráter de originalidade, e o universal voltou ao particular, habitando o reduto dos blocos afros", enfatiza o professor Nelson Maca, que ironiza: "Ontem e hoje, quem sustenta a indústria da alegria soteropolitana também tem suas exigências. Ir para o Candeal e pagar R$40, ótimo. Ir para o ensaio do Ara Ketu no Aeroclube, beleza. Comprar pacote turístico com direito a sair no Olodum, maravilha. Funkear na magia do falecido É o Tchan!, delícia. Agora, fazer tudo isso e cantar "eu sou negão e meu coração é a Liberdade" é tolerância demais. Até o exotismo tem limite".

TEXTO : Marcos Uzel - Correio da Bahia
20 de NOVEMBRO 2001



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