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RECÔNCAVO E A HISTÓRIA
O interesse mais recente de historiadores, etnógrafos, geógrafos, sociólogos e antropólogos pelo Recôncavo da Bahia data dos anos 40. A publicação, em 1944, do artigo Recôncavo da Bahia, pelo geógrafo paulista Aroldo de Azevedo, na revista Geografia, editada pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, marca o surgimento, em tempos mais próximos, de trabalhos sobre essa região.
Nesse mesmo ano, Carlos Fidelis Ott, então pertencente à Ordem dos Franciscanos, publicou, no Boletim do Museu Nacional, na série Antropologia, nº 4, artigo de excepcional qualidade, sob o título Os elementos culturais da pescaria baiana, nele divulgando os resultados das pesquisas de campo que efetuara na área do Recôncavo, a partir da então chamada Vila de São Francisco.
Surgiu em 1946 a primeira grande tentativa de reconstituição da história do Recôncavo, com a publicação, por Wanderley Pinho, da sua magistral História de um engenho do Recôncavo, trabalho premiado em 1º lugar, em concurso patrocinado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, concorrendo, naquela ocasião, com três outras monografias. Barbosa Lima Sobrinho, um dos componentes da comissão julgadora, em honrosa afirmativa, disse desconhecer, em nossa literatura histórica, obra que pudesse ser a ela comparada, “pela densidade da documentação e pela vivacidade da exposição e do comentário”. Considerou-a “um mergulho dos mais fundos até hoje realizados nas fontes da nossa história local e regional”(3).
Devem esses trabalhos ser considerados pioneiros no estudo do Recôncavo. Somente a partir de 1949 voltaria a região a constituir-se em objeto de pesquisas por autores baianos, havendo surgido nesse ano, o livro Povoamento da Cidade do Salvador, de autoria de Thales de Azevedo e, nos anos de 1955 e 1957, os dois volumes da obra Formação e Evolução Étnica da Cidade do Salvador, de Carlos Ott , ainda que essas publicações se refiram somente de modo indireto ao Recôncavo.
Em 1956, foi, contudo, publicado no Rio de Janeiro, em português, francês e inglês, o “livro-guia” – Bahia, destinado aos participantes do XVIII Congresso Internacional de Geografia que ali se reunia. Bahia foi redigido pelos geógrafos Alfredo José Porto Domingues e Elza Coelho de Souza Keller, constando dessa publicação um capítulo intitulado O Recôncavo da Bahia e a Cidade do Salvador, que deve ser considerado como a melhor descrição e apreciação até então feita do Recôncavo, pela excepcional competência dos seus autores.
No ano de 1958, o sociólogo Luiz Aguiar da Costa Pinto publicou um valioso ensaio sob o título Recôncavo – Laboratório de uma experiência humana, editado pelo Centro Latino-Americano de Pesquisas Sociais, no Rio de Janeiro(7). Nesse mesmo ano, Waldir Freitas Oliveira tentaria estabelecer uma divisão em sub-regiões, do Recôncavo, em aulas integrantes do Curso de Geografia Turística do Recôncavo e da Cidade do Salvador, patrocinado pelo Departamento Regional da Bahia do Senac, então dirigido por José Calasans. No ano seguinte, iria surgir, de autoria de Thales de Azevedo, o ensaio Problemas sociais da exploração do petróleo na Bahia(9) e o livro A rede urbana do Recôncavo, do geógrafo Milton Santos, trabalho pioneiro no Brasil na área da geografia urbana.
Passaram-se os tempos e, somente nos anos 70, voltaram a aparecer novos estudos sobre a região. O mais importante deles é, sem dúvida, o de autoria do historiador coreano Eul-Soo Pang - O engenho central do Bom Jesus na economia baiana –, publicado em 1979. É igualmente merecedor de registro, no âmbito da literatura histórica sobre a região, embora dela tratando de modo indireto, o livro de Kátia M. de Queiroz Mattoso: Bahia: A Cidade de Salvador e seu mercado no século XIX, publicado em 1978.
Agora, 20 anos depois, surgem dois volumes sob o título Povoamento do Recôncavo pelos engenhos – 1536-1888, de autoria, mais uma vez, de Carlos Ott, infelizmente falecido pouco tempo depois dessa publicação. Foi ela antecedida por numerosos artigos por ele escritos e publicados na Tribuna da Bahia e em A TARDE, a respeito de engenhos e igrejas dessa região.
Esse trabalho representa o resultado de uma longa vida de pesquisas efetuadas no Arquivo Público da Bahia, onde foram lidos e estudados mais de mil documentos, no Arquivo da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, no do Convento do Carmo e no da Ordem Terceira do Carmo, em Salvador, no Arquivo Municipal de Salvador e, fora da Bahia, no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, no Instituto Histórico Brasileiro e na Biblioteca Nacional.
No “Prefácio” da obra, por ele mesmo escrito, o autor esclarece que o seu estudo apresenta “muitas descobertas novas, como a diferença entre a sociedade baiana dos séculos XVI e XIX, a transição da oligarquia em democracia, e a formação da nova classe média ao lado dos fidalgos orgulhosos e dos escravos humildes”. Na “Introdução”, informa haver resolvido escrever sobre a história do Recôncavo levando em conta sua antiga divisão em freguesias, considerando ser ela a mais usada até a separação da Igreja do Estado, e, também, o fato de haver sido efetuada tomando, como limites, quase sempre, os rios e riachos da região, elementos básicos para a compreensão do processo histórico do seu povoamento.
O autor estende em demasia, ao nosso ver, os limites do Recôncavo, indo, em seus registros, alcançar os engenhos situados em terras de Valença, Taperoá, Nilo Peçanha e Cairu, na direção sul, bem como os que existiram em terras de Inhambupe, na direção norte.
Dada a quantidade surpreendente de informações contidas nesses dois volumes, lamentamos a inexistência de qualquer tipo de índice - desde o tradicional, indicando o conteúdo da obra e sua divisão em partes ou capítulos, até os extremamente úteis em trabalhos desse gênero, o nomástico e o toponímico. Principalmente se considerarmos haverem neles sido mencionados perto de dois mil engenhos, com o registro, por vezes, dos seus vários proprietários, ao longo de quatro séculos de História.
Consideramos, no entanto, da maior importância este derradeiro trabalho de Carlos Ott, estando certos de que passará a integrar de modo definitivo a bibliografia indispensável ao conhecimento da História da Bahia; ainda que sejamos forçados a discordar de algumas das suas afirmações ou apreciações sobre determinadas pessoas e certos fatos. O mérito maior de Povoamento do Recôncavo baiano pelos engenhos provém de haver acrescentado, a essa história, a referência a milhares de documentos inéditos e importantes sobre a propriedade de terras no Recôncavo, pacientemente lidos e estudados pelo autor, em diversos arquivos.
Carlos Ott faleceu em Salvador, a 14 de janeiro deste ano. Ao longo de sua vida publicou muitos livros e artigos em jornais e revistas nacionais e estrangeiras. Seu nome merece ser lembrado como o de um pesquisador incansável da História da Bahia e de um professor que muito ofereceu aos seus alunos, dentre os quais me incluo, na regência da segunda cadeira de Antropologia e Etnologia da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, escola da qual foi, por sinal, um dos fundadores.
Texto : Waldir Freitas Oliveira |