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Afirmação da Cor
Passados quase 30 anos, o Manifesto Negro teria que sofrer alterações para se adequar à situação dos afro-americanos, mas poderia ser adotado em sua quase totalidade para o caso dos afro-brasileiros. O que faz a diferença entre os dois países é o fato de que, nos Estados Unidos, outras medidas de ação afirmativa têm sido adotadas, fazendo com que a situação de desigualdade racial sofra mudanças bastante significativas. Já no Brasil, a dificuldade da sociedade de reconhecer a existência de um racismo que vitima, principalmente, negros é a mesma que impede a discussão ampla e objetiva sobre as ações afirmativas, e entre estas as de caráter preparatório.
Como lembra o professor Milton Santos, o debate sobre ações afirmativas não pode se resumir a posicionamentos a favor ou contra, pois a extrema desigualdade que atinge a maioria da população negra no país exige, dos governos e da sociedade, o compromisso de discutir qualquer política que vise amenizar as desigualdades causadas pelo racismo. Assim, no contexto da luta pela conquista de direitos, ações afirmativas são ações, públicas ou privadas, ou programas que visem beneficiar determinados grupos sociais, em função do entendimento de que estes vivem uma situação social merecedora de tratamento diferenciado. Geralmente são pensadas em torno de três vertentes principais. A preventiva engloba medidas no sentido de evitar a discriminação futura. No Brasil, o projeto de lei do deputado Luiz Alberto, que propõe a criação de um Conselho Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades, também exemplifica a ação afirmativa preventiva. (Luiza Barros)
Outra forma corrente de ação afirmativa é a de cotas. Entre as iniciativas institucionais destacam-se, no caso dos negros, um projeto de lei do senador Abdias do Nascimento, e a criação do Comitê Pró-Cotas para Negros da Universidade de São Paulo, que propõe a destinação de 10% das vagas daquela universidade para afro-brasileiros, que se submeteriam a um vestibular diferenciado, durante 25 anos consecutivos.
A terceira modalidade corrente de ação afirmativa é a reparação, que diz respeito à correção de discriminação passada. Contemporaneamente tem sido utilizada por povos que sofreram perdas em conseqüência de guerras. No caso brasileiro, o exemplo mais recente de ação reparatória são as indenizações pagas às famílias vitimadas pela ditadura militar. Em relação aos negros, o Movimento pelas Reparações calcula que o estado brasileiro deveria destinar a cada pessoa negra a importância de US$ 102 mil para reparar os danos causados pela escravidão e o racismo.
Nacional e internacionalmente são inúmeros exemplos de grupos que legitimamente se beneficiam de ações afirmativas, mas não há como negar que o debate se complica quando se trata dos negros como grupo beneficiário. Especialmente na questão das reparações, já que envolve a destinação de somas específicas de recursos. Pouco se discutiu no Brasil sobre os US$ 102 mil para cada brasileiro negro, embora propostas com as mesmas motivações sejam também feitas na África, no Caribe e nos Estados Unidos. O importante não é saber se os custos sociais da escravidão e do racismo podem ser mensurados financeiramente, mas reconhecer que estes processos impediram mais da metade dos brasileiros de ter acesso à plena cidadania e de que muito precisa ser feito para corrigir os atuais rumos de desenvolvimento desigual entre grupos raciais no Brasil.
Neste sentido, reler e reavaliar a proposta de James Forman pode ser um bom recomeço do debate sobre ações afirmativas considerando que todo o avanço que o movimento negro logrou até o momento ainda não foi suficiente para que criássemos espaços para a plena expressão da pessoa negra. O que mais chama atenção no manifesto afro-americano é o fato de que ele não privilegia a reparação dos negros enquanto indivíduos.
Ao contrário, o montante exigido foi pensado como um patrimônio da coletividade, a pedra fundamental de instituições que poderiam beneficiar o conjunto da sociedade, não apenas pela possibilidade de criação de emprego para trabalhadores negros, como também pela afirmação de uma visão anti-racista de mundo. Tal proposta, sem dúvida, abre a possibilidade de pensar as ações afirmativas dentro de um projeto político mais amplo onde o negro não esteja sujeito a uma nova escravização no âmbito restrito da indústria do entretenimento. Neste exato momento, os analistas da economia apontam para o aprofundamento da recessão no Brasil, fruto da crise vivida pelo processo de globalização. O duplo desafio é saber fazer avançar estas propostas numa conjuntura marcada pela escassez de oportunidades."
Texto : Luiza Bairros - UFBA
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