UTOPIA AFRICANA e IDENTIDADE AFROBRASILEIRA
Para compreender o processo permanente de elaboração da identidade negra neste país africano da Bahia, não podemos esquecer o cordão umbilical pelo qual os baianos acreditam estar ligados à África. Ao longo da história, depois do tempo da escravidão, este mito fundador dos negros da Bahia se adaptou, se transformou, mudou suas máscaras e seus hábitos para jogar o papel mágico de um espantalho que tem afastado a tentação, aliás sempre proposta pelas elites brancas, de aceitar a idéia segundo a qual os negros brasileiros seriam um simples produto da sociedade escravista luso-tropical.
Para esses negros da Bahia, é necessário estabelecer suas raízes antes e fora da escravidão. Assim o tempo e o lugar da liberdade original não pode estar dentro do Brasil. Utopia, anacronismo, pouco importa, esse refúgio da herança cultural é o núcleo duro da identidade negra baiana.
Essas tentações são especialmente apresentadas durante as conjunturas de mudança acelerada dos termos de integração do Brasil dentro de uma economia mundial. Nelas foram registradas mudanças sociais importantes para a modernização da sociedade brasileira e para relações raciais no país.
Entretanto, o fracasso de todas as sinceras tentativas de desenvolvimento das novas identidades negras dentro dessa conjuntura de modernização explica o retorno dos movimentos de afirmação negra para a tradição africana, tal como ela é preservada dentro das comunidades religiosas.
NAGOS E SABINOS
Por volta do fim do século XVIII, no início do século XIX, o Ocidente foi sacudido pela primeira vaga de revoluções liberais, desencadeadas pela Independência dos Estados Unidos da América, pela Revolução Francesa, pela Revolução dos Negros do Haiti, e pelas Revoluções produzidas pela expansão napoleônica na Europa e no império de Portugal. Neste novo momento da mundialização, fundado sobre o "livre comércio" e sobre a universalização dos direitos do homem, dois desafios se apresentaram para a sociedade escravista brasileira: o fim do pacto colonial com a metrópole portuguesa e o fim do tráfico de escravos africanos.
ABOLIÇÃO E REPÚBLICA
Ao fim do século XIX, em um tempo de cientificismo e de imperialismo, as elites brasileiras propuseram, mais uma vez, a modernização da sociedade. O Brasil era o último país escravista do Ocidente e a única monarquia na América. Era necessário então abolir a escravatura e proclamar a república. E os negros brasileiros, que pensavam disto? Abolição, sim, mas com o direito a terra e ao trabalho. República sim, mas com a ampliação dos direitos de cidadania para todos os brasileiros. Para miséria deles, foram considerados pelos republicanos positivistas como pouco civilizados para o trabalho e para a liberdade. Assim, o novo regime republicano brasileiro decidiu pela substituição da mão-de-obra escrava européia, pela via da imigração. No domínio da cidadania, a Constituição de 1891 decidiu pela incapacidade política da maioria negra, excluindo-a do direito ao voto, sob o pretexto do analfabetismo.
Da teoria à prática, o novo regime passara então a considerar toda manifestação pública da cultura negra de origem africana uma vergonha para o Brasil civilizado. A capoeira foi declarada contravenção criminal, assim como a religião africana - o candomblé. Os grupos de carnaval formados por negros, que desfilavam na rua com motivos africanos foram interditados pela polícia. Estava fora de questão deixar a Bahia parecer com a África.
Assim, os negros da Bahia, para salvar suas identidades e sua dignidade, refugiaram-se na sua africanidade originária. Apesar das expedições punitivas da polícia, os candomblés resistiram. A pureza africana constituiu então o núcleo duro da resistência negra contra o colonialismo interno.
Depois dos anos 30, século XX, em seguida à revolução que propôs a modernização do velho Brasil republicano, mais uma vez, a questão racial estava no centro da questão nacional brasileira. Os imperativos da industrialização e o surgimento de uma nova classe operária exigiam um novo enquadramento das classes populares no Brasil. Quem são os brasileiros? É sempre a mesma questão! Um novo paradigma, aquele da democracia racial brasileira, substituiu o racismo científico de outrora.
Este novo choque de modernidade impôs às elites brasileiras um grande desafio: como integrar as massas dentro de um processo de desenvolvimento, sem os riscos da revolução social e sem o fracionamento do tecido social, levando em conta a diversidade racial da população?
IDEOLOGIA NACIONAL
No que se refere à população negra, assistiu-se ao estabelecimento sólido de uma ideologia nacional, onde um dos elementos constitutivos era a negação da questão racial. Este novo consenso se apoiara sob a convergência de duas fortes correntes teóricas, à direita e à esquerda. Inicialmente, o desenvolvimento do marxismo como um instrumento de análise e ação política, a partir da obra de Caio Prado Jr., recolocara a questão racial no domínio da história da escravidão colonial, em um quadro de expansão do capitalismo centrado na Europa, e depois nos Estados Unidos.
De fato, a questão racial era amplamente secundária, pois os descendentes dos antigos escravos são hoje os explorados sob o capitalismo contemporâneo. Do antigo sistema de exploração, restam alguns traços secundários, no domínio da cultura, de fato um epifenômeno da super-estrutura social. O verdadeiro problema do povo seria sua consciência de classe, o instrumento necessário para o início da revolução social. Está enraizada no pensamento de esquerda do Brasil a convicção que a questão racial e as identidades que dela decorrem são questões externas ao Brasil, uma espécie de exportação perversa ou desastrosa de um problema que só interessa aos Estados Unidos. No fim das contas, a questão racial no Brasil só poderia acarretar o fracionamento do proletariado brasileiro.
Do lado da direita, a conhecida obra de Gilberto Freyre lança as bases da negação da questão racial do Brasil, pela afirmação da democracia racial contemporânea, resultado histórico da adaptação da sociedade patriarcal portuguesa aos trópicos. A apologia da mestiçagem das três raças, o branco, o índio e o negro, incorporada como ideologia de estado, para demonstrar o desenvolvimento harmônico do povo brasileiro.
O único refúgio dos movimentos negros na Bahia, para afirmação de sua identidade, continuou sendo a tradição africana, tal como é guardada com cuidado pelas comunidades religiosas do candomblé. Afinal, ninguém ousa dizer que o candomblé seja estrangeiro na Bahia! Sem pagar o pedágio à teoria política dominante, os movimentos de jovens negros baianos buscaram na tradição negra baiana e no pan-africanismo a ideologia alimentadora de suas lutas pela igualdade racial e pela inclusão cidadã dos nossos 80% de pretos e pardos na Bahia, todos negros por compartilharem uma cultura comum de origem africana.
TEXTO : Ubiratan Castro Araújo
Ubiratan de Araújo Castro é doutor em História pela Universidade de Paris, presidente da Fundação Palmares e membro da Academia de Letras da Bahia.