O MEDO DE ONTEM E DE HOJE


O legado da escravidão. Ou: que significaria para o Brasil. Hoje, ter tido um passado de sociedade escravocrata?
O ato de comprar gente tinha suas manhas. Havia a prova do suor, por exemplo. O comprador passava o dedo no escravo exposto no mercado e lambia para ver se o suor era verdadeiro ou efeito de algum óleo para que a pele parecesse brilhante e viçosa. Examinavam-se os dentes do escravo. Apertava-se a barriga para verificar se ele não tinha dor, escutava-se o peito, pedia-se para ele correr e pular.

Que significa para o Brasil, hoje, ter tido escravos?

O historiador baiano João José Reis responde: "Não acho que todos os problemas brasileiros, inclusive de relações entre as classes, tenham a ver com a escravidão. Mas o fato é que tivemos quase 400 anos de História em que os mais afortunados se acostumaram à noção de que os outros podem ser torturados. Isso pesa".

O historiador Manolo Garcia Florentino responde: "A escravidão foi a base a partir da qual se fundou uma civilização, para retomar Sérgio Buarque de Holanda, para quem o Brasil, por sua complexidade e diversidade, era uma civilização. Ela fundou a civilização brasileira. E ao fazê-lo viabilizou um projeto excludente, em que o objetivo das elites é manter a diferença com relação ao restante da população".





O historiador Flávio dos Santos Gomes: "É problemático pensar em continuidades. Se há no Brasil um sistema racial opressivo, não é necessariamente porque aqui houve escravidão. A explicação do racismo também se encontra no que ocorreu depois da abolição. É comum ouvir falar hoje em relações escravistas ou semi-escravistas no campo. Quando se diz isso, pensa-se num modelo que não é generalizante. Houve vários tipos de relação com escravos no Brasil.

Houve, por exemplo, escravos a quem era permitido manter pequenas roças, fazer um pequeno comércio ou receber por dia. Ora, relações que hoje são tachadas de escravistas podem na verdade ser piores do que certos modelos que vigoraram na escravidão".

O historiador Luiz Felipe Alencastro: "A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada, a saúde".

Hoje, a maioria não se lembra da escravidão no Brasil senão esporadicamente, vagamente. E em termos esquemáticos: Zumbi, o herói, ou o negro acomodado, o senhor desalmado ou a sinhazinha boazinha com o pessoal da senzala. A realidade foi mais complexa. Os historiadores, hoje, revelam um escravo que podia reunir na mesma pessoa o acomodado e o insubmisso. E um senhor que, embora na condução de um projeto arcaico e arcaizante, soube levá-lo avante. Manolo Florentino lembra que a escravidão foi o modelo de relações econômicas e sociais mais estável que o Brasil já teve.

Não é uma originalidade brasileira esquecer a História. Outros povos também a esquecem, especialmente seus pedaços ruins. A França não gosta de lembrar-se que boa parte da sua população colaborou com o nazismo. Os povos africanos não gostam de lembrar-se que também escravizaram, para uso próprio e para exportação. Para os Estados Unidos, a escravidão é um espinho encravado na garganta.

Ao Brasil, os últimos negros chegaram em 1850, ano em que terminou o tráfico. O historiador Flávio dos Santos Gomes, autor de Histórias dos Quilombolas, em que conta o episódio de Vassouras, é negro, e conseguiu retraçar a trilha de seus ancestrais até 1743. Quantas famílias brasileiras brancas são tão antigas? Se antiguidade é credencial para pretensões de nobreza e propriedade, aos negros brasileiros, que somados àqueles que o IBGE chama de "pardos" são muito mais numerosos que os americanos, e chegam quase à metade da população (44,2%, segundo o censo de 1990), deveria caber mais do que lhes tem cabido, na sociedade brasileira.

Esquecer o passado, antes que uma anormalidade, é a regra, entre os povos, mas traz um problema: faz com que nos conheçamos menos. A pesquisa histórica, hoje, no Brasil, é fortemente voltada para o século XX. Igualmente, a curiosidade eventual que a mídia, as escolas e o público em geral tenham pelo passado. Getúlio Vargas, tenentismo, Luís Carlos Prestes, 1964: eis o que se estuda, preferencialmente. "Há um presentismo que chega a ser trágico", diz Manolo Florentino. Procura-se desvendar o país esquadrinhando seus sucessos e percalços neste século, mas as explicações mais profundas talvez se situem em períodos anteriores.

O sonho americano, como lembrou a revista The New Yorker era uma sociedade democrática e igual. Já o projeto brasileiro, segundo Florentino, era (e é?) uma sociedade de diferentes. Os poderosos precisavam (precisam?) ter quem se situe embaixo para se sentir mais poderosos e livres. O sonho democrático americano é embaralhado e atazanado pela existência dos escravos. Já o projeto brasileiro é por eles completado e viabilizado. O projeto brasileiro é arcaico e arcaizante, nota Florentino, mas atenção: é exitoso.

Só que o êxito tem um preço. Uma parte desse preço aquele medo que se apossou de Vassouras, depois da fuga, da escravaria da Fazenda Freguesia, ou de Salvador e um pouco por toda parte no Império, depois da Revolta dos Malês, e que foi num crescendo, e que às vésperas da abolição era um sentimento generalizado. É simplismo pensar que somos iguais ao que fomos, mas, sem esquerdismos nem populismos, talvez não seja absurdo pensar que o medo é feito do mesmo material do que aquele que ocorre ao percorrer hoje uma rua do Rio de Janeiro, à noite.

Fonte : Revista VEJA, ed. Abril, ed. 1.444, de 15.05.1996


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